A
instabilidade dos conceitos, dos valores, das normas, de quase tudo, tem sido
característica marcante deste momento de ‘modernidade líquida’, para utilizar a
conhecida expressão de Zygmunt Bauman. Nesse contexto, poucos assuntos tem
suscitado mais controvérsia e se prestado às mais variadas colorações, que
aquele que se refere ao ‘bullying’.
Sem
ingressar neste momento na complexa discussão pedagógica, sociológica ou
histórica desse fenômeno, limitamo-nos à sua abordagem jurídica, de direito
posto, a qual sem sombra de dúvidas deveria e deve ser de pleno conhecimento de
todos os envolvidos na atividade educacional, em especial os gestores das
instituições de ensino.
O
tema é extenso, cheio de nuances e certamente espinhoso (convidativo a ser
colocado na pilha dos temas a serem vistos “em
algum momento mais oportuno, mas não agora…”). Todavia, com a edição das
Leis Federais 13.185/2015 e a recente alteração do art. 12 da LDBE, pela Lei
13.663/2018, essa remessa à posteridade pode ou poderá ter repercussões sérias
às instituições de ensino e seus gestores, demandando alguns esclarecimentos
antes da tomada de decisão sobre como agir (ou não agir).
Uma
das formas de bem compreender as alterações normativas pelas quais vem passando
o assunto (e não só esse) é entender a dimensão que vem alcançando a ideia de compliance (originária do verbo inglês to comply), que em suas linhas gerais
significa agir de acordo com a regra posta.
A
compreensão sobre como se deve comportar o empreendedor frente à ordem jurídica
vem sendo alterada, especialmente à luz da ideia de compliance, não sendo suficiente e até mesmo aceitável apenas não
concorrer ativamente para uma conduta irregular ou ilícita, ou escusar-se sob o
manto de um “socialmente aceitável” “desconhecimento”. Exige-se agora posição
ativa, antecipada, material e formalmente ordenada, demonstradora de que o
empreendedor é precavido e previne com políticas internas a realização dos
objetivos da lei.
Nessa
linha a ordem jurídica posta tem avançado sobre a temática do bullying, em especial em ambiente
escolar. Em que pese a Lei Federal 13.185/15 já tivesse normatizado o assunto
em caráter geral, somente com a edição da Lei Federal 13.663/18 houve alteração
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, inserindo-se no art. 12, no rol das
incumbências dos estabelecimentos de ensino, a obrigação de “promover medidas
de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência,
especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das
escolas” (inciso IX), bem como “estabelecer ações destinadas a promover a
cultura de paz nas escolas” (inciso X).
Agora,
portanto, em ambiente escolar, deverão ser compreendidas as duas normas como um
conjunto único de proteção visando o combate ao Bullying, inserido no chamado
Programa Nacional de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying).
Sua
definição legal está prevista no art. 1º, § 1o
, da Lei 13.185/2015, sendo entendido o bullying como “todo ato de
violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem
motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo contra uma ou mais
pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à
vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas”.
Tendo
em vista que tanto os novos dispositivos inseridos na LDBE quanto o art. 5o da
Lei 13.185/2015 determinam a obrigação de promover medidas de conscientização, de prevenção e de
combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática
(bullying), no âmbito das escolas, qual seria a conduta esperada pela ordem
jurídica? Como deveriam proceder os estabelecimentos de ensino? O que
significaria agir conforme a regra posta, nesse caso?
Certamente
a conduta omissa não será (nem está sendo) tolerada pelo Poder Judiciário.
Visualizando-se a conduta esperada a partir da ideia de compliance tem-se que esta não poderia passar ao largo de uma
explícita e expressa apresentação da política
anti-bullying do estabelecimento de ensino, a qual deverá estar retratada
em norma própria (interna), podendo ser seu regimento interno ou instrumento
específico, no qual se apresente o posicionamento do estabelecimento sobre tal
modalidade de atos, que atitudes institucionais toma para que estes não
aconteçam e, caso acontençam, que atitudes determina a partir da tomada de
conhecimento.
Como
adiante esclareceremos, de uma forma ou outra o contexto da efetivação do
bullying (ações e omissões) será analisado para fins de definição das
responsabilidades civis frente a atos que assim se caracterizem, podendo,
inclusive, a depender de suas peculiaridades, deixarem de ser equacionados como
meras infrações civis e passarem a ser
enquadrados como infrações penais.
Segundo
o art. 2º da Lei Federal 13.185/18, a caracterização do bullying decorre da constatação de elementos externos,
potenciamente perceptíveis pelas demais pessoas que coexistam com a vítima e
o(s) aggressor(es), tais como intimidação; humilhação; discriminação; ataques
físicos; insultos pessoais; comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;
ameaças por quaisquer meios; grafites depreciativos; expressões
preconceituosas; isolamento social consciente e premeditado; pilhérias.
Será
irrelevante se o desenvolvimento dessas condutas ocorreu no meio físico ou no
meio virtual para fins legais e de enquadramento da conduta como bullying, sendo importante dar destaque
a essa informação haja vista ter-se criado uma equivocada cultura popular no
sentido de que o meio virtual seria mais permissivo do que o meio físico.
Como
o bullying pode ser praticado em
ambiente escolar tanto por menor quanto por maior de 18 anos, é sempre bom
destacar que se a conduta chegar a ser enquadrada como crime aos menores em
questão será aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tratando o
ilícito como infração penal (e não como crime), aplicando-se medidas
socioeducativas (e não penas).
Nessa
medida é bom que se esclareça a toda comunidade escolar a linha tênue que separa
uma conduta prevista como bullying pelo
art. 3o, da Lei 13.185/15, de sua versão agravada (crime), prevista no
ordenamento juridico penal brasileiro.
Analisando
os chamados bullying moral e o verbal
previstos nos incisos I e II, do art. 3º, da Lei 13.185/15, que se materializam
através de condutas como “xingar e apelidar pejorativamente” algúem, difamá-lo,
caluniá-lo, ou “disseminar rumores” sobre alguém, se pode facilmente vislumbrar sua potencial transformação no crime de
injúria, figura agravada em relação ao bullying.
No caso específico da injúria, a depender de como ela se qualifique, poderá vir
a ser agravada em seu enquadramento, passando
a ser injúria por preconceito, envolvendo acepções sobre raça, etnia,
religião, dentre outras.
Se
dissemir rumores desconfortáveis sobre alguém configura bullying, a depender do que se diga facilmente poder-se-á realizar
o enquadramento do fato como
“difamação”, figura penal de maior gravidade.
O
chamado bullying físico previsto no
inciso VI, do art. 3º, da Lei 13.185/18, caracteriza-se mediante atos como
empurrar, bater, socar e outras formas de agressões corporais. No ambiente
escolar certamente existirão níveis de intensidade lesiva distintos, a depender
do tamanho dos envolvidos (crianças, adolescentes e até mesmo adultos, haja
vista o ambiente escolar iniciar-se na educação infantil, mas percorrer todas
as faixas etárias até o ensino superior). Nessa medida, claramente há potencial
para que se chegue a sua versão agravada, lesão
corporal, via de regra lesão corporal leve (art. 129 do Código Penal).
Ainda
que possamos acreditar que subtrair coisa alheia móvel de outra pessoa em
ambiente escolar (aluno ou não), mediante ardil ou mediante ameaça física ou
psicológica, possa ser apenas uma brincadeira,
a luz do art. 3º, inciso VII, da Lei 13.185/18, tal conduta será enquadrada
no mínimo como bullying material. A
depender das circunstâncias, todavia, certamente poderão ser enquadradas como
suas figuras penais típicas, ou seja, furto
(art. 155, CP) ou roubo (art. 157, CP).
Condutas
ainda mais sofisticadas como a realização de ameaças, de agressões posteriores
visando forçar alguém (aluno ou não) a entregar um bem que não pretendia
normalmente entregar, não fosse a ameaça, certamente se enquadrarão em bullying material, podendo, igualmente, vir a ser enquadrada em sua figura agravada,
extorsão (art. 158, CP).
Outras
condutas enquadradas como bullying, previstas
na Lei 13.185/15, nas quais se obriga alguém (aluno ou não) a praticar uma
conduta mediante ameaça, são igualmente passíveis de enquadramento como constrangimento ilegal, crime previsto no art. 146
do Código Penal.
Se
o art. 3º, inciso III, da Lei 13.185/15 afirma ser bullying assediar, induzir e/ou abusar, sexualmente alguém,
naturalmente sua própria leitura já deixa antever a grande possibilidade dessas
condutas virem a ser consideras crimes, de natureza sexual. Não se olvide que
em nosso ordenamento jurídico, a luz do art.
213 do Código Penal, estupro é todo ato sexual forçado, não somente a
conjunção carnal mas qualquer outro ato libidinoso (que não a conjunção
carnal), tendo sido revogado o art. 214 do Código Penal, ampliando-se o campo
de enquadramento da figura do estupro.
Se
a vítima for menor de 14 anos a intimidação sexual caracterizará estupro de vulnerável,
apenada nos termos do art. 217A do Código Penal.
O esclarecimento e o
comparativo que acima se apresentou visou demonstrar a todos os envolvidos no
meio escolar, especialmente gestores, que a reprovação das social das condutas
tidas como bullying sempre existiu e
sempre foram severamente apenadas.
Se a potencialidade
lesiva dessas condutas sempre foi avaliada de forma minorada, por se
compreender que se tratavam de atos de “crianças” e “jovens”, com
desconhecimento sobre seus atos e sobre os efeitos dos mesmos nos demais, a nova legislação não deixa sombra de
dúvida de que a responsabilidade por criar políticas que informem, coibam e
punam referidos atos é não só do Estado e da família, mas igualmente dos
estabelecimentos escolares.
Reitera-se, portanto,
que sob o ponto de vista jurídico, para fins de responsabilização civil (no
mínimo), não bastará apenas ser contra o bullying, sendo necessário
materializar atos, normas e políticas internas que indiquem claramente como
está sendo informada a comunidade escolar sobre o assunto, como se está
promovendo a política de paz nas escolas e a vedação ao bullying, mediante quais ferramentas se está buscando detectar e
mapear sua eventual ocorrência, bem como por quais medidas e com quais atos se
está promovendo a sanção (se for o caso) das eventuais condutas praticadas.
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